Também sou pai e portanto compreendo. Vocês querem o melhor para o filho,
para a filha. A melhor escola, os melhores professores, os melhores colegas.
Vocês querem que filhos e filhas fiquem bem preparados para a vida. A vida é
dura e só sobrevivem os mais aptos. É preciso ter uma boa educação.
Compreendo, portanto, que vocês tenham torcido o nariz ao saber que a escola
ia adotar uma política estranha: colocar crianças deficientes nas mesmas classes
das crianças normais. Os seus narizes torcidos disseram o seguinte: Não
gostamos. Não deveria ser assim! O problema começa com o fato de as crianças
deficientes serem fisicamente diferentes das outras, chegando mesmo, por vezes,
a ter uma aparência esquisita. E isso cria, de saída, um mal-estar... digamos...
estético. Vê-las não é uma experiência agradável. É preciso se acostumar... Para
complicar há o fato de as crianças deficientes serem mais lerdas: elas aprendem
devagar. As professoras vão ser forçadas a diminuir o ritmo do programa para que
elas não fiquem para trás. E isso, evidentemente, trará prejuízos para nossos
filhos e filhas, normais, bonitos, inteligentes. É preciso ser realista; a
escola é uma maratona para se passar no vestibular. É para isso que elas
existem. Quem fica para trás não entra... O certo mesmo seria ter escolas
especializadas, separadas, onde os deficientes aprenderiam o que podem aprender,
sem atrapalhar os outros.
Se é assim que vocês pensam eu lhes digo: Tratem de mudar sua maneira de
pensar rapidamente
porque, caso contrário, vocês irão colher frutos muito
amargos no futuro. Porque, quer vocês queiram quer não, o tempo se encarregará
de fazê-los deficientes.
É possível que na sua casa, num lugar de destaque, em meio às peças de
decoração, esteja um exemplar das Escrituras Sagradas. Via de regra a Bíblia
está lá por superstição. As pessoas acreditam que Deus vai proteger. Se assim
fosse, melhor que seguro de vida seria levar uma Bíblia sempre no bolso. Não sei
se vocês a lêem. Deveriam. E sugiro um poema sombrio, triste e verdadeiro do
livro de Eclesiastes. O autor, já velho, aconselha os moços a pensar na velhice.
Lembra-te do Criador na tua mocidade, antes que cheguem os dias das dores e se
aproximem os anos dos quais dirás: "Não tenho mais alegrias..." Antes que se
escureça a luz do sol, da lua e das estrelas e voltem as nuvens depois da
chuva... Antes que os guardas da casa comecem a tremer e os homens fortes a
ficar curvados... Antes que as mós sejam poucas e pararem de moer... Antes que a
escuridão envolva os que olham pelas janelas... Antes que as pessoas se levantem
com o canto dos pássaros... Antes que cessem todas as cançF5es... Então se terá
medo das alturas e se terá medo de andar nos caminhos planos... Quando a
amendoeira florescer com suas flores brancas, quando um simples gafanhoto ficar
pesado e as alcaparras não tiverem mais gosto... Antes que se rompa o fio de
prata e se despedace a taça de ouro e se quebre o cE2ntaro junto à fonte e se
parta a roldana do poço e o pó volte à terra... Brumas, brumas, tudo são
brumas... (Eclesiastes 12: 1-8)
Os semitas eram poetas. Escreviam por meio de metáforas. Metáfora é uma
palavra que sugere uma outra. Tudo o que está escrito nesse poema se refere a
você, a mim, a todos. Antes que se escureça a luz do sol... Sim, chegará o
momento em que os seus olhos não verão como viam na mocidade. Os seus braços
ficarão fracos e tremerão no seu corpo curvo. As mós - seus dentes - não mais
moerão por serem poucos. E a cama pela manhã, tão gostosa no tempo da mocidade,
ficará incF4moda. Você se levantará tão cedo quanto os pássaros e terá medo de
andar por não ver direito o caminho. É preciso ser prudente porque os velhos
caem com facilidade por causa de suas pernas bambas e podem quebrar a cabeça do
fêmur. Pode até ser que você venha a precisar de uma bengala. Por acaso os
moinhos pararão de moer? Não, os moinhos não param de moer. Mas você parará de
ouvir. Você está surdo. Seu mundo ficará cada vez mais silencioso. E conversar
ficará penoso. Você verá que todos estão rindo. Alguém disse uma coisa
engraçada. Mas você não ouviu. Você rirá, não por ter achado graça, mas para que
os outros não percebam que você está surdo. Você imaginou uma velhice gostosa. E
até comprou um sítio com piscina e árvores. Ah! Que coisa boa, os netos todos
reunidos no "Sítio do VovF4", nos fins de semana! Esqueça. Os interesses dos
netos são outros. Eles não gostam de conviver com deficientes. Eles não
aprenderam a conviver com deficientes. Poderiam ter aprendido na escola mas não
aprenderam porque houve pais que protestaram contra a presença dos deficientes.
A primeira tarefa da educação é ensinar as crianças a serem elas mesmas. Isso
é extremamente difícil. Fernando Pessoa diz: Sou o intervalo entre o meu desejo
e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim. Frequentemente as escolas
esmagam os desejos das crianças com os desejos dos outros que lhes são impostos.
O programa da escola, aquela série de saberes que as professoras tentam ensinar,
representa os desejos de um outro, que não a criança. Talvez um burocrata que
pouco entende dos desejos das crianças. É preciso que as escolas ensinem as
crianças a tomar consciência dos seus sonhos!
A segunda tarefa da educação é ensinar a conviver. A vida é convivência com
uma fantástica variedade de seres, seres humanos, velhos, adultos, crianças, das
mais variadas raças, das mais variadas culturas, das mais variadas línguas,
animais, plantas, estrelas... Conviver é viver bem em meio a essa diversidade. E
parte dessa diversidade são as pessoas portadores de alguma deficiência ou
diferença. Elas fazem parte do nosso mundo. Elas têm o direito de estar aqui.
Elas têm direito à felicidade. Sugiro que vocês leiam um livrinho que escrevi
para crianças, faz muito tempo: Como nasceu a alegria. É sobre uma flor num
jardim de flores maravilhosas que, ao desabrochar, teve uma de suas pétalas
cortada por um espinho. Se o seu filho ou sua filha não aprender a conviver com
a diferença, com os portadores de deficiência, e a ser seus companheiros e
amigos, garanto-lhes: eles serão pessoas empobrecidas e vazias de sentimentos
nobres. Assim, de que vale passar no vestibular?
Li, numa cartilha de curso primário, a seguinte estória: Viviam juntos o pai,
a mãe, um filho de 5 anos, e o avF4, velhinho, vista curta, mãos trêmulas. C0s
refeiçF5es, por causa de suas mãos fracas e trêmulas, ele começou a deixar cair
peças de porcelana em que a comida era servida. A mãe ficou muito aborrecida com
isso, porque ela gostava muito do seu jogo de porcelana. Assim, discretamente,
disse ao marido: Seu pai não está mais em condiçF5es de usar pratos de
porcelana. Veja quantos ele já quebrou! Isso precisa parar... O marido, triste
com a condição do seu pai mas, ao mesmo tempo, sem desejar contrariar a mulher,
resolveu tomar uma providência que resolveria a situação. Foi a uma feira de
artesanato e comprou uma gamela de madeira e talheres de bambu para substituir a
porcelana. Na primeira refeição em que o avF4 comeu na gamela de madeira com
garfo e colher da bambu o netinho estranhou. O pai explicou e o menino se calou.
A partir desse dia ele começou a manifestar um interesse por artesanato que não
tinha antes. Passava o dia tentando fazer um buraco no meio de uma peça de
madeira com um martelo e um formão. O pai, entusiasmado com a revelação da
vocação artística do filho, lhe perguntou: O que é que você está fazendo,
filhinho? O menino, sem tirar os olhos da madeira, respondeu: Estou fazendo uma
gamela para quando você ficar velho...20
Pois é isso que pode acontecer: se os seus filhos não aprenderem a conviver
numa boa com crianças e adolescentes portadores de deficiências eles não saberão
conviver com vocês quando vocês ficarem deficientes. Para poupar trabalho ao seu
filho ou filha sugiro que visitem uma feira de artesanato. Lá encontrarão
maravilhosas peças de madeira...
Olá, pessoal... gostaria muito que lessem esta carta tão libertadora de Ruben Alves, a respeito da inclusão...é, realmente, maravilhosa!
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